ORGANIZAÇÃO PAULISTA
DE ARTE EDUCAÇÃO

Ensaio sobre quase três aulas de fotografia


Camila Serino Lia[i]

Sou arte/ educadora e, desde agosto deste ano, dou aulas complementares de fotografia, às sextas-feiras de manhã, em uma escola particular em Atibaia (São Paulo), para pequenas turmas de crianças entre 9 e 11 anos, que estão cursando 4º e 5º ano do Ensino Fundamental I. A aula acontece em um espaço chamado Floresta, que possui área ao ar livre, onde acontecem brincadeiras, e uma área coberta, onde acontecem as aulas de ioga, artes e matemática. É, portanto, na confluência das experiências nesse espaço que a aula acontece como aula de fotografar-brincar, fotografar-desenhar…

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

Neste relato para a Organização Paulista de Arte Educação (OPAE) apresento um pequeno ensaio visual que registra o processo de criação, investigação e reflexão das minhas primeiras propostas com esse grupo. As imagens, captadas com câmera de celular, foram produzidas para documentar as aulas e são de minha autoria.

A ideia é a de que estudantes desenvolvam um percurso de criação individual e coletivo, por meio da linguagem da fotografia.  Compreendo a fotografia como campo expandido de recepção e produção de imagens por diversidade de dispositivos de ver, captar, produzir, arquivar e partilhar imagens que vão além do equipamento fotográfico. Câmeras escuras ambulantes, lupas e binóculos são exemplos de recursos lúdicos que podem expandir as nossas experiências visuais e corporais.

 Para a primeira aula, minha intenção foi dupla:  perceber a relação das crianças com três dispositivos de ver (uma câmera escura ambulante[ii], uma câmera fotográfica analógica e um celular) e sondar temas que elas tinham interesse em fotografar. Dessa aula, trago imagens do momento em que fiz um pedido a elas: que desenhassem algo que fosse misterioso e desafiante fotografar.

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

Levei pequenas caixinhas de fósforo forradas de papel preto para remeter a câmera fotográfica e sugeri às crianças que inserissem detalhes do corpo da câmera como o visor, a objetiva e alguns botões. A minha câmera analógica estava montada em um tripé ao lado da mesa onde elas desenhavam e acessível para quem quisesse observar seus detalhes mais de perto. Enquanto desenhava, uma das crianças disse que a sua câmera tinha botões como do joystick do videogame, e essa fala me fez imaginar possibilidades de intercâmbio entre dispositivos de ver, jogar e brincar.

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

Dentro de cada uma das caixinhas haviam pequenos papéis para desenhar. Minha intenção era aguçar o imaginário e abrir conversas sobre correspondências com a formação da imagem no interior da câmera escura e da analógica. As crianças envolveram-se com a proposta. Notei que era muito importante para elas falarem sobre os desenhos. Então, esse momento da aula foi significativo para o reconhecimento e a troca de ideias, percepções e imaginários. O que é misterioso? Uma casa antiga e abandonada! As estrelas, os planetas, as galáxias, o universo! O que é desafiante? Fotografar um passarinho bem de perto! Fazer uma imagem bonita e captar a beleza das árvores!

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

Atibaia é uma cidade com áreas verdes extensas, mas que, nos últimos anos, tem sofrido com o acentuado processo de desmatamento e verticalização. Na escola, as crianças convivem com a natureza, sobem em árvores, colhem amoras, alimentam passarinhos, brincam na terra e também engajam-se em debates e movimentos que visam à preservação do meio ambiente. Recentemente, por exemplo, a escola foi palco da Virada Cultural intitulada Amazônia de Pé, que faz parte da “maior mobilização nacional pela proteção da Amazônia, do bioma e povos originários”. O evento foi realizado em setembro, na praça em frente à escola e em parceria com a ONG Simbiose Atibaia[iii]. Nesse contexto, o desenho das crianças expressa temas e questões com os quais elas estão sensibilizadas, implicadas e engajadas.

No intervalo de uma aula e outra, eu precisava definir em qual ponto do meu planejamento eu pousaria a minha atenção e como o desenvolveria na aula seguinte a partir do que eu havia rastreado e coletado na aula anterior.[iv] Os desenhos e as conversas com as crianças indicavam que elas estavam interessadas em assuntos de difícil apreensão ou captura visual, como um passarinho que poderia voar e escapar, a cor e a forma de um planeta invisível a olho nu, o interior de uma casa abandonada onde ninguém poderia entrar. Também mostravam interesse em produzir imagens de temas que expressam beleza, como as árvores, e provocam deslumbramento, como as estrelas no céu noturno.

Uma possibilidade seria explorar as objetivas da câmera fotográfica – grande angulares, normais e teleobjetivas – como modos de perceber o que está mais próximo e mais distante do nosso corpo. Como eu não tinha à disposição mais de uma câmera, entendi que poderia inventar algum recurso lúdico que promovesse esse tipo de experiência. Eu tinha alguns tubos de papelão em casa e intuía que eles poderiam servir para tal. Com a ajuda de um marceneiro, os tubos foram cortados com serra circular em diferentes comprimentos. Eu queria que a experiência das crianças fosse de brincar de ver de perto e de longe para começar a introduzir algumas noções como angulação do enquadramento da imagem.  

Em casa, a minha filha, que é aluna da escola e participa das aulas, deu a ideia de pintarmos os tubos com tinta preta para que ficassem mais parecidos com a objetiva da câmera fotográfica. E então pensei: “que tal se essa pintura fosse feita pelas crianças, em vez de levar “tudo pronto” para a aula? Afinal, se estou propondo percursos de criação, essa seria uma oportunidade para engajá-las no processo de construção desses dispositivos de ver.

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

Essa aula começou com uma conversa sobre os desenhos da aula anterior, sobre ver de perto e de longe e compartilhei uma curiosidade que eu tinha lido na Folha de São Paulo a respeito de uma imagem postada no Twitter por um cientista francês que se assemelhava ao desenho do planeta Marte feito por uma das estudantes. Minha intenção também foi instaurar espaço de interação do grupo e aquecimento de conversas e olhares em torno de imagens de natureza e suportes diversos nos momentos iniciais das aulas.

Depois fizemos alguns exercícios de movimentação da objetiva zoom da minha câmera fotográfica, a partir de um ponto de vista fixo, para que todos pudessem perceber com mais exatidão como enquadravam os elementos do espaço em frente até as laterais da visão e do corpo. Enquanto rodiziavam o uso da câmera, também experimentavam mais livremente olhar ao redor através dos tubos de papelão, e, assim, fomos conversando sobre o que enxergávamos com nossos olhos ou com olhos de peixe, de coruja, de águia…

Para terminar este relato, quero destacar duas palavras que fornecem pistas reflexivas sobre a metodologia que estou construindo nessas aulas de fotografia com esse grupo: também e enquanto.

Também é advérbio que indica:

  1. comparação e expressa condição de equivalência ou de similitude; da mesma forma;
  2. inclusão; além disso, outrossim, da mesma forma.

Pode também ter o sentido de acrescentar, incluir. E seus sinônimos são: além disso, ainda, mais, além do mais, ademais, inclusive, até, junto, juntamente, conjuntamente, outrossim.

Nessas aulas, fotografamos, desenhamos e pintamos. Desenho e pintura são, portanto, linguagens artísticas que podem ser trabalhadas conjuntamente nesse ateliê. Quando incluímos mais recursos para as crianças explorarem, expandimos as relações e as experiências delas com a cultura visual.

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

Enquanto passa a ideia de tempo, conformidade ou proporção. É conjunção que significa:

  1. sempre que; quando;
  2. à medida que; à proporção que; ao passo que;
  3. de certa maneira; como.

O ateliê é lugar do enquanto, do durante, do como. Ao mesmo tempo que fotografamos, conversamos e brincamos. Enquanto oriento uma etapa da aula, interajo com as crianças empenhadas com a pintura, ao mesmo tempo que escolho onde colocar os tubos carregados de tinta molhada para secar…  E o tempo passou voando! Concluo com imagens de como a terceira aula começou, da esquerda para a direita, HOM, MLC, PWN e SCL[v], estudantes da Escola Terra Brasil.

Registro de aula de fotografia. Escola Terra Brasil. agosto de 2022. Autoria: Camila Serino Lia.

[i] Doutoranda na área de Arte Educação no Instituto de Artes da Unesp (IA-UNESP/SP) que está concluindo uma pesquisa no campo da mediação cultural, onde também desenvolveu seu mestrado sob orientação da professora Rejane Galvão Coutinho. Atua com formação de arte/ educadores e professores de Arte, na docência na licenciatura em Artes Visuais, em cursos de educação a distância e em projetos educativos em instituições culturais. É apaixonada por desenho e a fotografia.

[ii] Sobre câmeras escuras, sugiro conhecer os trabalhos de Miguel Chikaoka e Dirceu Maués.

[iii] [iii]  Fonte: https://www.instagram.com/p/Cih6tYeLXCH/

[iv] Aqui faço referência as variedades de atenção do pesquisador cartógrafo durante o trabalho de campo – o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento – propostas por Virgínia Kastrup em seu texto O funcionamento da atenção do cartografo no livro Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, organizado por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escócia (Porto Alegre: Sulina, 2015).

[v] Iniciais dos nomes e sobrenomes dos estudantes.

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