ORGANIZAÇÃO PAULISTA
DE ARTE EDUCAÇÃO

Projeto “Jardim do Tio Frans”


Guto Carvalho[1]

            02 de fevereiro de 2022. Dia da minha efetivação como Professor de Arte no município de Pilar do Sul, uma cidadezinha de aproximadamente 30 mil habitantes, a 150 quilômetros da cidade de São Paulo. 03 de fevereiro, Auditório da Secretaria Municipal de Educação, fui chamado pela secretária Vera Lúcia, para escolher minhas aulas. Fui aplaudido pela equipe da secretaria e por parte dos colegas professores presentes naquela sessão de atribuição. Fico emocionado e um breve filme passa em minha cabeça. Acredito que essas palmas tenham sido em reconhecimento a longa caminhada artística que venho construindo através dos anos em minha cidade, e pela certa alegria por parte das pessoas presentes em receber mais um professor na rede pública de educação.

            Começo esse relato de aulas, não me colocando em evidência para me promover, mas para contar para você que está lendo esse artigo, que eu desejei muito estar no lugar onde estou. Que eu desejei por muitos anos ser Professor de Arte efetivo na minha cidade. Fiquei alguns anos lecionando como categoria “O” em algumas escolas estaduais da região, depois fui gestor de cultura aqui, depois me efetivei como professor de arte numa cidade vizinha e por lá fiquei durante quatro anos, sempre aguardando um próximo concurso na cidadezinha de “Pilarzim” como a chamo carinhosamente. Vale ressaltar que desde sempre resido nessa cidade, mesmo quando trabalhei em outros municípios. E que há 12 anos sou professor de um colégio particular daqui. Mas não bastava, eu era feliz mas não por completo. Precisava fazer parte do quadro de funcionários públicos, e poder lecionar nas  escolas na qual fui formado. Era uma questão de honra. Aos 31 anos,  consegui esse feito. Assumi meu cargo na Escola Municipal de Ensino Fundamental de Tempo Integral “Maria Aparecida Perches”. Aqui, nosso público de estudantes é dos anos iniciais, ou seja, do 1° e 2°anos do Ensino Fundamental. Eles entram às 8h da manhã na escola e nela permanecem até as 16h. São crianças cheias de energia, criatividade, muita espontaneidade e grandes possibilidades de simbolizar e ressignificar.

            Depois de ter iniciado meu trabalho, efetivamente na sala de aula, e após ter passado alguns meses, me adaptando à nova rotina e à nova escola, pude identificar suas potências e suas dificuldades. No que tange diretamente às aulas de Arte (do currículo regular) e as aulas de Linguagem e Expressão Artística ( que faz parte da matriz da escola integral municipal), pude perceber uma dificuldade em ter acesso fácil a materiais de qualidade, em abundância e com variedade. Dito isso, preciso ressaltar que nesse período, eu estava participando como aluno do curso “Arte na BNCC” do Instituto Arte na Escola, peça fundamental no projeto que relatarei a partir do próximo parágrafo.  O curso foi fundamental para me auxiliar nas dificuldades encontradas em propor aulas de arte a partir das hoje exigidas “habilidades” que a Base Nacional Comum Curricular trás. Mas, mais do que isso,melhor do que isso, o curso, apresentando procedimentos e artistas, evidencia a proposição de aulas a partir de materiais não-convencionais, a partir dele, reafirmo o quanto uma aula de arte deve ser não-convencional. Como diz Gandhy Piorski em seu livro “Brinquedos do chão -a natureza, o imaginário e o brincar“, que coroou as ideias e proposições para as aulas de arte:   “O mundo material tem repercussão direta no mundo simbólico. Um se comunica com o outro. A materialidade do brincar é do campo das significâncias da alma.”

            A partir desse pensamento de materialidades não-convencionais, propus às crianças que explorássemos com mais frequência os outros espaços da escola. O jardim, o pátio, a quadra poliesportiva municipal que fica em frente ao portão da escola. Nessa proposta, fomos juntos, descobrindo materiais encontrados no parque e no jardim.  Folhas de árvores, gravetos, galhos de árvores podadas, terra. Paralelamente a essa investigação, apresentei às crianças o artista polonês, naturalizado no Brasil, Frans Krajecberg.  Mostrei fotos e vídeos de suas obras e de sua vida, e músicas criadas em sua homenagem. É  necessário ressaltar que nesses espaços de exposição sobre a vida e obra do artista, as crianças ficavam maravilhadas e apaixonadas por suas criações, pois se destacavam na ressignificação de elementos da natureza, na dimensão das obras construídas, na ação ambiental envolvida e principalmente na casa/obra da árvore na qual morava. Era um fascínio total!

            Seguimos, após o reconhecimento desse espaço que nos é  concedido, explorando as materialidades encontradas. Juntávamos materiais orgânicos com materiais sintéticos (folhas e gravetos com tinta, gravetos com fitas, folhas e areia com cola, papel com pétalas e folhas), mas teve uma combinação material em especial que  teve um destaque, a linha e os gravetos. Há na escola uma caixa com vários novelos de lãs e linhas, quase nunca utilizados. Quando apresentei aos pequenos exploradores a possibilidade de utilizar as linhas para criar uma outra possibilidade de composição, houve um estranhamento. Afinal, nunca  tinham experimentado trabalhar com pedaços de madeira e linhas. Na cabecinha de algumas crianças, a linha era um material que a mãe e a avó utilizavam para costurar roupas. Nesse momento da investigação/proposição as crianças compreenderam que as criações não precisavam ser como elas sempre foram condicionadas a fazer, que a combinação de materiais poderia ser investigada e experienciada, principalmente com materialidades singulares, capazes de ganhar formas, texturas e composições variadas.

            No decorrer das semanas, nossa sala de aula (aqui conseguimos ter uma sala física exclusiva para as aulas de Arte). Ela se tornou um verdadeiro ateliê vivo. Eram galhos, gravetos, folhas,  troncos de árvores que brotavam das mais incríveis experiências dentro das possibilidades exploratórias que surgiam. A cada semana, os planos de aula se alteravam, pois novas possibilidades surgiam e algumas criações não davam tão certo como imaginávamos. O que era muito bacana. É importante destacar o fracasso em algumas atividades, pois isso mostra o caráter experimental fundamental de investigação permanente que acredito que as aulas de arte devem ter. Percebi que o fracasso nas aulas nos tiram da zona de conforto na qual muitos de nós arte-educadores nos colocamos, e ela faz com que as atividades e projetos venham a ser mais instigantes ainda. Dessa forma, o processo de criação e exploração é legitimado e se faz tão importante quando o resultado final.

            O processo de investigação foi acontecendo de forma orgânica, as crianças foram se habituando ao tratarem materialidades não-convencionais como parte fundamental no percurso criativo das aulas de arte. Os processos foram acontecendo e se fixando nas paredes, em cima dos armários. A partir dessas obras criadas coletivamente, tive a ideia de solicitar o saguão da Secretaria Municipal da Educação, que fica relativamente próximo à escola. Então, levei parte dos trabalhos para lá e montei uma exposição com as obras dos alunos. Ela ficou montada para visitação por 15 dias. Durante o tempo de exposição, levei todas as turmas da escola para visitar a exposição de suas obras. Muitos ficaram maravilhados por verem suas criações em um prédio grande, imponente, onde muitos alunos nunca nem sequer tinham entrado. Vale ressaltar, que nesse momento eu tive que selecionar parte dos trabalhos, pois o espaço expositivo tem um fluxo muito grande de pessoas, e acontecem vários eventos lá. Então selecionei alguns trabalhos que mostravam a variedade de procedimentos e cores criadas pelas crianças.

            No meio desse percurso, descobri que estava em cartaz a exposição “Frans Krajcberg: Por uma arquitetura da natureza” no MUBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia). Fui até lá, fiz uma visitação, gravei um vídeo entre algumas obras do artista e exibi na escola para as crianças. Elas ficaram maravilhadas. Alguns me pediram até para levá-los visitar a exposição, o que era impossível naquele momento. Mas a partir de todo esse processo, na semana seguinte, um aluno em especial, o Murilo do então 1° ano A, me abordou na sala de aula e disse: “Professor, eu pedi para minha mãe me dar de presente de aniversário a visita na exposição do Frans Krajcberg em São Paulo. Talvez a minha tia vá me levar.” Eu fiquei muito impressionado com a fala dele. Meus olhos ficaram marejados. E pensei: como uma criança troca um brinquedo na data do seu aniversário por uma visita à uma exposição artística? Talvez aí resida o poder da arte. Se passaram algumas semanas e no dia 10 de setembro de 2022, recebo uma foto na minha rede social. A mãe do Murilo me envia uma foto dele imerso nas obras de Krajcberg. E aquilo foi a coisa mais linda que me aconteceu naquele dia!

(Murilo na Exposição. Foto cedida por Cíntia Nayara, mãe do Murilo.)

            Desde que me conheço como professor, lembro de ter ouvido que “se tocarmos um aluno que seja, nossa tarefa diária estaria no caminho certo”. Acredito que com essas aulas, o processo de criação artística e as obras do Frans, conseguiram me tocar e tocar tantas outras crianças. Quem dera se todas pudessem ter a oportunidade que o Murilo teve e continuar a fruição e a estesia fora da sala de aula, compreendendo suas possibilidades de uma extensão artística. Isso me deixou tocado e me faz pensar todos os dias: Quais políticas públicas estamos pensando para fomentar possibilidades diversas às nossas crianças e adolescentes? Hoje sigo acreditando que pequenas proposituras na sala de aula podem ganhar grandes dimensões. Basta acreditarmos genuinamente no potencial das crianças. Com toda a certeza, em algum momento, seremos surpreendidos.


[1] Arte Educador. Professor artista

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