ORGANIZAÇÃO PAULISTA
DE ARTE EDUCAÇÃO

Relato de experiência com desenho de humor na escola


Elisângela de Freitas Mathias*
Professora da rede Estadual de São Paulo há 20 anos

Precedentes

O meu interesse em desenho infantil surgiu, primeiramente, pela vivência escolar como professora de Arte e intensificou, mais tarde, quando me efetivei no cargo de professora de Arte na cidade de Piracicaba, passando a ter contato direto com o Salãozinho de Humor de Piracicaba. O Salãozinho de Humor é um evento paralelo ao Salão Internacional de Humor de Piracicaba que visa o incentivo ao desenho de humor gráfico através da promoção de um concurso para crianças e adolescentes que participam com desenhos inéditos, de autoria própria, nas linguagens do cartum, charge, caricatura e tiras/HQs. A primeira visita que fiz ao Salãozinho de Humor de Piracicaba, em meados do ano de 2007, me impressionou imensamente. Percebi que a maioria dos desenhos expostos eram cópias ou decalques de personagens dos desenhos animados considerados engraçados pelos alunos. Personagens, como: Pato Donald, Pernalonga, Coiote, Frajola, Pateta, entre outros, representavam o desenho de humor da criança. Diante desta realidade, comecei certos questionamentos a respeito do desenho. Dá para ensinar desenho? Dá para aprender essa linguagem? E o desenho de humor? O que faz um desenho ser engraçado para a criança? Como aprender a desenhar uma coisa que provoca o riso? Aprendendo os códigos da linguagem do humor gráfico, ela pode ser criadora em potencial?

Refletindo sobre isso, no ano de 2008, iniciei com os alunos um percurso criador pessoal cultivado pela produção cultural da cidade com foco no humor gráfico. Imaginei que poderia propor aos alunos uma aprendizagem da linguagem do desenho de humor, a partir das histórias em quadrinhos, que fosse significativa para eles, onde pudessem ser autores de seus desenhos e ao mesmo tempo desenvolvessem o ato de desenhar. 

Uma aprendizagem da linguagem do desenho de humor

Da mesma maneira que a criança no início da alfabetização conhece as letras, depois experimenta juntá-las em palavras e posteriormente frases e textos, desenvolvi com os alunos formas de pesquisar o alfabeto visual dos desenhos, em especial, o desenho de humor. As aulas se deram partir da pesquisa, análise, leitura, interpretação e produção de desenhos que tivessem os elementos gráficos das histórias em quadrinhos como base de pesquisa. A seguir, compartilho uma (das várias) experiências de exploração dos elementos visuais contidos nos desenhos de humor:

Turma de 6º ano do Ensino Fundamental, numa manhã de outono.

Iniciei a aula desenhando na lousa, com a participação dos alunos que ora davam sugestões, ora desenhavam junto comigo, uma cena simples: uma bailarina em posição de dança. Construímos o desenho, passo a passo, enfatizando cada elemento gráfico: onomatopeia, expressões faciais, recursos gráficos, balões e planos de fundo. Às vezes eu mudava ou adicionava um elemento gráfico, propositalmente, com o intuito de fazer com que os alunos percebessem a diferença e a importância de conhecer tais códigos para poder operá-los com mais liberdade e criatividade. Expliquei aos alunos que tais elementos precisam dialogar entre si, que existem infinitas possibilidades de combinação e que, quando ocorre uma “alteração” na harmonia combinatória dos códigos, deixando de dialogar com o todo, ocorre o humor. Ao desenho da bailarina, fomos inserindo códigos gráficos que cumpriam seu papel comunicativo.  A bailarina dançando sobre um palco (plano de fundo e ângulos de visão), com o semblante (expressão facial) de uma felicidade tranquila, os movimentos corporais suavizados pelas pequenas linhas ligeiramente curvas ao redor do corpo dela e evidenciados pelas notas musicais no espaço do palco (recursos gráficos) e uma plateia aplaudindo, entusiasmada, o talento da artista (balões, plano de fundo e onomatopeias). Terminei o desenho, inserindo acima da cabeça da bailarina um balão característico de pensamento com o desenho de um coração no centro dele. Perguntei aos alunos o que haviam entendido do desenho e a maioria respondeu que a cena mostra o sucesso de uma bailarina e seu amor ao que faz. Estimulei os alunos a pensarem o que faria mudar radicalmente a mensagem do desenho. Enquanto os alunos procuravam respostas, apaguei o semblante feliz da bailarina, substituindo por uma expressão de tristeza, apenas modificando a posição das sobrancelhas e da boca. Os alunos estranharam a substituição, porém compreenderam que a combinação desses códigos poderia ser infinita, bem como, as mensagens derivadas destas combinações. Solicitei aos alunos que procurassem outras soluções utilizando um ou dois códigos e desenhassem na lousa. Foi bastante interessante esta atividade, pois o desenho por mim iniciado foi adquirindo outras soluções e, consequentemente, outras histórias representadas. Da bailarina que estava feliz com sua desenvoltura no palco, várias outras apareceram: aquela que estava com cara de dor por causa de sua unha encravada (desenho de estrelinhas e pequenas linhas quebradas perto do pé), aquela que tremia com medo de errar (traços trêmulos em volta do corpo da bailarina), aquela que pouco se importava com as vaias ao demonstrar cara de pouco caso (onomatopeias e expressões faciais) e aquela que não via a hora de parar tudo aquilo pois a fome era tanta que o balão de pensamento com um singelo coração no centro fora drasticamente substituído por um frango assado inteiro. Esse desarranjo foi o estopim para arrancar risos sinceros da classe. O humor se deu por essa “desarmonia” e os alunos compreenderam isso. Ao compreender, eles riram muito, ‘entrando’ na história representada. Conversamos a respeito do uso dos códigos visuais e sobre a importância de conhecer a linguagem do desenho de humor para saber criar as próprias soluções no desenho. Após o desenho na lousa, pedi que fizessem no caderno, o desenho deles.

Em muitas das atividades desenvolvidas em sala de aula para o aprendizado do desenho a partir do desenho de humor, em especial, as HQs, as caricaturas, as charges e os cartuns, foi possível entender que o desenho de humor pode ser fonte de referências positivas quando trabalhado em toda a sua abrangência.  Não ficar restrito à cópia de personagens, mas, sobretudo, explorar os códigos da linguagem do desenho de humor por meio da criação e construção de desenhos, é uma forma produtiva para o incentivo à construção do desenho autoral do aluno. Uma abordagem significativa – pautada em pesquisa, análise, leitura, interpretação e produção da linguagem do desenho de humor – reforça o potencial criativo do aluno, pois ao conhecer e utilizar os elementos do humor gráfico, ele cria esquemas e códigos visuais próprios a partir das referências apresentadas a ele.

Liquidificador ligado. Gabriela, 10 anos. 2012. O descabido da cena e os recursos gráficos de movimento utilizados ao redor do corpo do personagem incitam ao riso.
Desenho interpretativo com onomatopeias a partir da escuta da música O Carimbador Maluco de Raul Seixas. Murilo, 10 anos. 2011.
Tira de Humor com destaque para o plano de fundo. Letícia, 13 anos. 2011. Nesta tira, o primeiro plano narra uma história enquanto que o segundo narra outra.
Girafa andando de ônibus. Gabriela, 10 anos. 2012. O som da freada do ônibus representado por uma onomatopeia.
Vaca jogando Pokémon Go. Manuela, 10 anos. 2016. Expressões faciais e balões para representar a derrota no jogo.

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do CEART-UDESC em Florianópolis/SC. Mestra em Ensino de Artes, pelo PROF-ARTES, no Instituto de Artes da UNESP/São Paulo (2016-2018). Especialista em Linguagens da Arte pelo CEUMA-USP (2013). Licenciada em Educação Artística com habilitação em Artes Visuais pela UNESP/Bauru (2005), Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela UNESP/Marília (1999). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Artes Plásticas, Arte Educação e Aprendizado do Desenho de Humor. É Professora da rede estadual do Estado de São Paulo na cidade de Piracicaba.

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